sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Abre portas da memória


Aquela rua faz recordar ela,
assim como dias nublados
dessa outra fazem pensar.

O livro lembra alguém
já a lua inconstante ainda outra.

Novamente, também a música, alguém,
e a lavanda do incenso
abre portas da memória.

Mas e de nós? 

Ruas, dias,
livros, luas e céus,
músicas
incensos de lavanda

também fazem lembrar
de nós,

também, em silêncio e olhando
para dentro,

talvez sorrindo,
em todo caso serenas

se recordam de nós?

De nós, dentre tantos outros
em suas lembranças. 



segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Já agora contemplo as esferas


Poemas alheios

Capítulo XII do "Tarjuman al-Ashwaq",
do Shaykh al-Akbar [Grande Mestre]
Ibn al-Arabi
a partir da versão em inglês 
de R. A. Nicholson

Para Geovana.

Em Dhú Salam 
e pelas bandas do monastério de al-Himá
pastam gazelas 
que como estátuas de mármore
resplandecem ao sol.

Já agora contemplo as esferas
já agora sirvo na igreja
já agora, pastor, cuido de um colorido prado. 

É por isso que aos olhos vulgares
ora sou pastor de gazelas no deserto
ora sou monge cristão
ora sou astrólogo.

Meu Amado é três ainda que seja Um
pois as três Pessoas em essência são
Uma.

Não te incomodes portanto, amigo,
que eu fale de gazelas
como estátuas de mármore que
resplandecem ao sol.

Ou que metaforicamente
fale
de gazelas, do sol, 
dos braços e seios de estátuas brancas,

pois assim, em metáforas,
dei virtudes às árvores
qualidades aos campos
e o relâmpago vesti
de lábios sorridentes.


sábado, 13 de novembro de 2021

Até o caroço


hey babe
eu disse
para a analista

essa moça
gostava de árabes

brutos, sem toque
— sem toque!, frisou —
nem oral faziam

veja você se pode

nem oral!,
enquanto eu
eu
a chuparia
até o caroço

e a analista sorria
tomando nota de tudo

e a moça que
gostava dos árabes brutos
sem toque
e que nem oral faziam

acabou optando por eles mesmos
vai ficar com um deles
casar e filhos etc.

são escolhas e gostos,
fazer o quê?

e a analista sorria
tomando nota de tudo

já eu,
ainda solteiro, na minha,

nem árabe nem bruto
eterno otimista

sigo em busca
de quem eu chupe
até o caroço


terça-feira, 26 de outubro de 2021

Banho


O primeiro irrompeu
sem aviso

– quente e certeiro –

testa e olho esquerdo 

o segundo, ainda mais longe
fez pouso nos cabelos

enquanto os derradeiros
do queixo para baixo
tomaram caminho.

Ela, sem saber como agir,
recuperada do susto 
ficou dando
uns gritinhos empolgados. 


sábado, 9 de outubro de 2021

Sempre você e a lua


Sempre você e a lua

falo diante
da foto dela

escuros
os cabelos
e o céu da noite

a pele, contudo,
reluz como também
lunar fosse

enquanto,
no alto,
algo de prata
o astro cintila.


segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Aprendam, garotos

 

"Oi, bom dia"

ela disse sorrindo
e, dando as costas,
fechou a porta.

Eu, óbvio,
meti o olhar na bunda
generosa na calça jeans.

Aprendam, garotos:
o raciocínio
e a voz
podem até estar lentos,

os olhos,
nunca.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Patrice


Para Carlos "Abdoulah"dos Santos
 socialista e internacionalista

Quando a seiva verde e preta
irromper,
já tão vermelha,
sangue de mártir
refletindo a lua,
os povos verão 
do solo sagrado 
sangrado verão.


sábado, 7 de agosto de 2021

Era uma esquina de rua escura


Era uma esquina de rua escura
e eu
vagarosamente
costas na parede
escorregava
ao chão.

Ela parou e olhou para trás,
metros à frente.

Nada disse.

Me viu agachado,
de cócoras.

Acho que ali eu já chorava.

Ela
nada disse
deu as costas
e seguiu.

Chorando na esquina escura
de cócoras
costas na parede
segui também.

Não me deixaram
sair para a rua, depois.
Olhos muito vermelhos,
me disseram:
você está mal.

E era verdade
— mas do
     coração.


sábado, 31 de julho de 2021

Ela se ofendeu, talvez?


com o teor das palavras ao ouvido
ela se ofendeu,
talvez?

quando

piranha, vadia
safada
quenga e tudo o mais

em nossos lábios

soa melífluo e
fortificante
ladainha de santos

como

em celeste lupanar ela estivesse

como

puta de todos nós
ela fosse


terça-feira, 27 de julho de 2021

A morte não vem correndo quando você chama


Poemas alheios

Charles Bukowski (1920-1994),
extraído aqui

Eu ia aos piores bares
na esperança
de ser morto
— mas tudo que eu conseguia
era ficar bêbado
e, pior,
até os donos de bares
acabavam gostando de mim.

Então eis-me tentando
ser empurrado no abismo
mas tudo que conseguia
era bebida grátis
enquanto por aí
em uma cama de hospital
algum pobre-diabo agonizava
espetado de tubos
e lutando pela vida.

Ninguém me ajudaria a morrer
e a bebida continuava vindo, 
o dia de amanhã me aguardando
com suas garras de aço,
seu incômodo anonimato,
suas dúbias incertezas.

A morte não vem correndo
quando você chama
— mesmo que de um castelo
brilhante,
ou de um farol no oceano,
ou do melhor (ou pior)
bar da face da Terra.

Essa impertinência
faz apenas com que
os deuses hesitem
e retardem.

Perguntem para mim:
já tenho 
72.


quarta-feira, 30 de junho de 2021

Eu que anoto sonhos


sonhei com Laila e
eu que anoto sonhos
vejo que há exatamente um ano
ela já me aparecia
em onírica forma

desta nova vez
conversávamos de casamentos etc.
deitados em minha cama
enquanto a pele nua
eu lhe acariciava


segunda-feira, 28 de junho de 2021

Se você encontrar tempo


Poemas alheios

Nanao Sakaki (1923-2008),
extraído aqui

Se você encontrar tempo para conversar,

— leia livros.

Se você encontrar tempo para ler,

— caminhe por montanhas, desertos e oceanos.

Se você encontrar tempo para caminhar,

 cante e dance.

E, encontrando tempo para dançar,

— senta quietinho, seu idiotinha feliz. 




quarta-feira, 23 de junho de 2021

Meu coração se tornou capaz de muitas formas



Poemas alheios

Capítulo XI do "Tarjuman al-Ashwaq",
do Shaykh al-Akbar [Grande Mestre]
Ibn al-Arabi
a partir da versão em inglês 
de R. A. Nicholson

Pássaros nas árvores
se somam ao meu lamento.

Silêncio! Não reveleis com vosso canto
meus secretos anseios e pesares. 

Falo com ela na véspera, em voz chorosa
de amante apaixonado.

Os espíritos me apontam os dedos 
e isso me aniquila,

atormentado de desejo
e paixão insatisfeita.

Onde, as promessas de Jam' e de al-Muhassab?
Onde, de Dhát al-Athl e Na'mán?

Rodeiam meu coração a cada momento
em amor e angústia,
abalando meus pilares.

Mesmo o melhor dos homens
beijou a pedra da Caaba,
ainda que profeta fosse.

E o que é o templo comparado
com a dignidade do homem?

Juraram não mudar
mas ela não mantém promessas. 

E das coisas mais maravilhosas é ela,
como uma gazela em véus

apontando o caminho com seus dedos incisivos
e olhos brilhantes.

Uma gazela cujo pasto
está no lado esquerdo do meu peito. 

Que assombro! Um jardim
em chamas.

Este meu coração 
que se tornou capaz de muitas formas:

— é um pasto para as gazelas
e um mosteiro cristão,

templo para idólatras
e Caaba do peregrino

as mesas da Torá
e o livro do Corão.

Sigo a religião do amor:
por onde quer que seus camelos sigam
lá estão minha religião e fé.



sábado, 20 de março de 2021

Explicando a morte para crianças


Hoje, na hora de dormir,
meu filho de 6 anos 
desandou a chorar —

me perguntou se eu morreria
se ele morreria

para onde iríamos
o que aconteceria

e que não queria que eu morresse
e que não queria morrer

e assim por diante.

Procurei as palavras certas
para acalmá-lo
e fazê-lo parar
de chorar. 

Mas se eu próprio aos 42 anos
não consigo compreender

como traduzir 
para uma criança
a inexplicabilidade da morte?

Acabei optando por dizer
que a vida é bela
que estamos vivos
e que, ei!, 
vamos brincar
e aproveitar.